sexta-feira, 17 de março de 2017

Leão d'Ouro (1885) cervejaria museu

Em boa hora d'enthusiasmo innovador os fantasistas pintores, que compõem o triumphante "grupo do Leão", — tão celebrado já e estabelecido e applaudido n'esta capital formosa, que é de marmore e de fabuloso granito sobretudo para as esturdias manifestações artisticas,— se lembraram de decorar originalmente as paredes da escolhida cervejaria onde passam as noites em alegre convívio amigo, e que, depois de certa mudança, se investiu do titulo colorido de "Leão d'ouro", como que evocando a tradição lentamente apagada das velhas estalagens, que se vão esborrondando e sumindo na poeira tenebrosa e bafienta do esquecimento, numa sepulchral subversão de romantisados cardanhos ramalhetados com verde loureiro, rubicundas e roliças Maritornes, maus lençoes povoados de pulguedo, guisados frustes d'aldeia, vinhos azêdos, nao esquecendo os celebres assaltos feitos, ás horas caladas da noite, por barbudos homens de fera catadura reforçada pelo trabuco das lendas.

Azulejos fingidos, Raphael Bordallo Pinheiro (detalhe), editado com desenho de João Ribeiro Cristino, 1885.
Imagem: Provocando uma teima & O Occidente n.° 229, 1 de maio de 1885

Pois, vivamente impulsionados pelo seu capricho, e com um absoluto desinteresse quasi nababico, conseguiram em pouco tempo transfor-mar uma loja acachapada de tosca estructura, n'uma especie d'interessante museu-livre, faustosa-mente forrado com pinturas opulentas, de caracter vario, nas quaes cada um pôz sem duvida o melhor do seu talento, atiçado pelo esforço nobre d'emulação n'este pittoresco, saudavel, e fecundo concurso.

E creio que d'ora em diante muito forasteiro ha de ir no Leão d'ouro examinar attentamente os quadros que o ornamentam, se lhe convier saber qual o cothurno e o pulso d'alguns modernos artistas portuguezes, que ainda não acharam nas galerias nacionaes, albergadas sob a negra aza madrasta do peco estado, um pobre modesto logar para uni só quadrinho bem pequenino. 

Entra-se, e olhando para a direita por uma supersticiosa precaução d'enguiço, admira-se logo a tela ampla onde Malhoa pintou um effeito ridente, vermelho e radiante d'alvorada, desabrochando luminosamente sobre um deserto brejo, n'uma suprema explosão d'ouro e sangue transparentemente fundidos, com alguns farrapos isolados de nuvem que parecem coagulados, escurecidos e avéssos á serena festa musicante da mocidade do dia, gorgeiada pelos passaros.

Paul da Outra banda, Pântano, Vista do Alfeite, Charco de Corroios, José Malhoa, 1885.
Imagem: Blog do Noblat

Debaixo do ceu resplandecente a paysagem plana e verdosa desdobra-se ainda confusamente, empastada de sombras, acreamente velada pela fulva luz diaphana que vem amarellecer as aguas baças do primeiro plano, onde umas tufadas tabúas se ramificam n'uma disparatada mancha japoneza, emquanto que, do outro lado, um barco escavacado emerge a prôa limosa e podre, lembrando a cabeça informe d'um monstro habitante da soalheira laguna.

Evidentemente o artista apaixonou-se pelo seu assumpto, que lhe pediu urna verdadeira pyrotechnia de cor; foi sincero e exuberante, surprehendendo o flammame espectaculo da natureza acordando festivalmente; e com o pincel soube fazer obra de poeta. É tambem de Malhôa uma tira ao alto, trabalho de pequeno (alego, em que, por traz diurnas enroscadas ramarias dc macieira em flór, se vê uma torre de negro aspecto perfilada no ar e cercada pelo vôo torneante e brincalhão das andorinhas, repatriadas no cortejo da primavera.

Em seguida, encontra-se um destes quadros magistraes de Silva Porto, uma paysagem repousada feita com a sua experiente superioridade, que sempre nos faz a impressão de que cada tom e cada toque por elle empregados sabem perfeitamente o togar que occupam, na obra d'arte, compenetrados e orgulhosos.

Enche o lado esquerdo da tela uma cerrada massa verdenegra d'altas oliveiras, com as espessas folhagens duras esburacadas dc sombras, os grossos troncos pardos e retorcidos sahindo do solo como convulsos braços de gigantes mal enterrados; algumas cabras pretas trituram hem pacificamente, no primeiro plano; depois, sob a aunosphera azul manchada largamente dc branquejantes nuvens, estende-se o campo vestido d uma verduira intensa, saciada de humidades, pondo em destaque algumas esqueletaes arvores nuas e outras já toucadas d'uma florente brancura primaveral. O conjuncto é d'uma tranquilla harmonia, simples e forte como a natureza. 

O quinteiro (Carriche), Silva Porto, 1885.
Imagem: Veritas

João Vaz tem uma marinha, d'um encantador effeito decorativo. O sol pôe-se, atravessando um dourado luzeiro translucido por cima d'uma lingua de casaria lisboeta, que se acinzenta na sombra; e nas aguas mansas do Tejo, onde o ceu esfumadamente brumoso se reflecte, uns barcos tapam o alvacento horisonte com o vulto escurentado das suas velas em calmaria, escorridas.

Ha um socego em todo o quadro, illuminado d'uma tepida claridade vaporosa e como coada, e executado sobriamente n'uma tonalidade quente e doce, alourada por vezes, que o torna um bello pedaço de pintura risonha, e ao mesmo tempo caractenstica n'esta cidade de beira-mar.

Monteiro Ramalho. (1)

Naturalmente, Raphael Bordallo descobriu e executou, com a sua graça incessante, cousa que destacasse, risse áparte pela sua barulhenta novidade foliã.

N'um painel de azulejos, — porque estão imitados, realisados tão enganadoramente, que ninguem se atreve a farejar sequer a existencia de uma recondita e suterrada tela, — Bordallo tracejou espirituosamente as divertidas caricaturas de todos os bons companheiros do grupo, mostrando cada qual pelo mais saliente e typico lado da sua individualidade ou da sua pessoa.

Azulejos fingidos (detalhe), Raphael Bordallo Pinheiro, 1885.
Imagem: Provocando uma teima

Assim, o Alberto de Oliveira, esgrouviado e louro, com a jubosa cabelleira esvoaçate, procura amavelmente trespassar um catalogo ao refestelado e sceptico leão, que o acolhe com um riso marôto, emquanto saboreia a sua cachimbada fumosa; o pacato, brando e quedo Silva Porto cavalga turbulentamente um touro, agarrando-lhe os agudos cornos n'um jubilo de animalista;

Silva Porto, Ribeiro Christino e Alberto Oliveira
Azulejos fingidos, Raphael Bordallo Pinheiro, 1885.
Imagem: Provocando uma teima

Vaz anda escarranchado n'uma canõa virada; Malhôa, não contente com o seu vezeiro costume de furtar arvores para as suas paysagens, arrancou uma algures e lá vae com ella ao hombro;

José Malhoa
Azulejos fingidos, Raphael Bordallo Pinheiro, 1885.
Imagem: Provocando uma teima

Vieira, com a sua gorducha cara alegrada pela sempiterna risada, avança hilariantemente a cabeça d'entre as folhas d'uma rosa; o Columbano, baixinho e ironico, empunha vigorosamente a sua enorme paleta carregada de tintas, tendo perto o sorridente Martins que prepara os seus pinceis; Antonio Ramalho, pequenino e rotundo, faz o oficio de rir, pousado nas alturas como um gordo pardal bigodoso;

emquanto que o Gyrão, com uma cabeça expressiva de inspirado, ala-se montado n'um allo fantasmagorico, seguido de um comico bando de coelhos armados de lapis, e precedido por uma ranchada corredora de patos a quem o Pinto abre caminho, calvo e agitando as suas curtas azas batentes de joven gallinaceo.

Moura Girão Manuel e Henrique Pinto
Azulejos fingidos, Raphael Bordallo Pinheiro, 1885.
Imagem: Provocando uma teima

Emtanto Christino abre alvoroçadamente o seu indispensavel guarda-sol, como que precavendo-se contra o vento de loucura que saccode freneticamente os seus camaradas; e o proprio Raphael parece fugir á tempestade ruidosa que semeou, rindo rasgadamente, pansudo e elegante como um sileno mundano, ás cavalleiras no seu corpulento e nervoso gato assanhado, que não tarda a desabar estouvadamente em cima do nosso amigo Manuel e do seu consolado patrão.

Eu cá, francamente, acho que esta extravagante comeostção bohemia é uma das mais fulgurantes fantasias, que tem produzido a verbo endiabrada do brilhante satyristo. Que o dono da casa lambem apanhou o seu retrato, collocado justamente sobre o reposteiro luxuoso em que a sr.a D. Maria Augusta Bordallo maravilhosamente bordou um chimerico leão batalhante.

Pintou-o Columbano, que lhe quiz dar um curioso aspecto archaico, parodiando certas obras-primas ingenuas e trabalhadas de Alberto Durer.

É magnifica a esguia tela em que Vieira aninhou perfumosamente algumas rosas sensuaes emmolhadas com begonias, debaixo d'uma fófa cortina amarella com prégas quebradas, por onde a sombra negreja.

Este fino colorista, cuja rica paleta rutila promessas, nunca por certo nos mostrou, como neste quadro delicioso e d'um solido valor, uma felicidade d'execução tio segura, fresca, espontanea, e cheia de luz. 

Com um attrahente assumpto muita vez usado — e reusado — e renovado, dilecto ao seu pincel que lhe sabe aproveitar habilmente a variada abundando, Gyrãoo fez um quadro de primeira ordem, onde uns bonitos coelhos em sucia róem folhas de couve vorazmente, dentro de uma capoeira espaçosa, emquanto que um altivo gallo, duma naturalidade admirava!, olha d'alto empoleirado numas grades, tendo ao lado a passiva gallinha aninhada e uma pequena cascata de hervas pendentes, salpicadas de floritas. 

Uma capoeira, Moura Girão, 1885.
Imagem: Provocando uma teima

Por seu lado, Christino deu uma vistosa e agradavel paysagem, com um curvo riacho de aguas verdoengas e lisas, sobre que se debruçam os choupos reverdecidos da tenra folhagem recem-aberta, deixando desafogado o primeiro plano onde umas atarefadas lavadeiras esfregam a sua roupa suja laboriosamente.

E estamos em frente da obra, que soberbamente tem provocado o mais pertinente interesse. É um vasto quadro pintado por Columbano, no qual reapparecem os do "grupo do Leão" reunidos familiarmente em torno de urna longa mesa onde pouco pantagruelicamente figuram reluzentes copos com restos de cerveja ou de vinho, preferido pelos rapazes mais abertamente meridionaes, com uma airosa basofia de raça.

As figuras são de tamanho natural, postas n'uma pittoresca desordem, em altitudes desalinhadas e á vontade de quem está abandonadamente n'um facil cavaco intimo, chalaceando e rindo, ou escutando n'uma indifferença; — e é extraordinaria a pujança brusca, impetuosa, fluente, como agitada de uma febre de observação feliz, com que o valente pintor brochou todos estes corpos bem animados da real vida, colhidos, transplantados victoriosamcnte da sua existencia de cada dia.

O Grupo do Leão, Columbano Bordalo Pinheiro, 1885.
Representados, da esquerda para a direita: em fundo, João Ribeiro Cristino, Alberto de Oliveira, criado Manuel, Columbano, criado António, Braz Martins; sentados, em segundo plano, Manuel Henrique Pinto, João Vaz, Silva Porto, António Ramalho, Rafael Bordalo Pinheiro; em primeiro plano, José Malhoa, Moura Girão, João Rodrigues Vieira.
Imagem: MNAC

É um trabalho de mestre, com proporções quasi athleticas, que indubitavelmente lhe veem da facunda e poderosa factura; nem mesmo se repara na carestia da côr: tamborila-nos insistentemente na lembrança um Franz Halls, um Rembrandt, e, numa vaporisaglio de reminiscencia, as figuras surgem-nos vagamente com largos chapeus cavalleiros ou górros farfalhudos de plumas, negros gibões avivados dc rendas, espadas, pedrarias. Ha profundos defeitos, que diabo, palpavets, graúdos, inexoraveis; mas se o grande talento rebelde do Columbano não encerra o dom da pachôrra, e descuida portanto os lados mais materiaes da arte, na presença d'uma obra d'este alcance temos decididamente que lhe perdoar isso, e sem nos fazermos rogados, porque ahi está o grão mestre pintor Rubens que não é positivamente o que se diz perfeito.

Columbano.
Azulejos fingidos, Raphael Bordallo Pinheiro, 1885.
Imagem: Provocando uma teima

Bofé, amigos meus, que não sei se esta afortunada casa é uma cervejaria, ou "restaurant" ou café, ou botequim, ou o quê; sómente me quer antes parecer que é um benefico e hospitaleiro museu, onde uma pessoa que se preze dc bom gosto póde digerir extasiadamente, n'uma capitosa contemplação d'obras d'arte.

Monteiro Ramalho. (2)


(1) O Occidente n.° 229, 1 de maio de 1885
(2) O Occidente n.° 230, 11 de maio de 1885

Leitura relacionada:
Os quadros do "Leão d'Ouro", Diário de Lisboa, 7 de abril de 1939
Nuno Saldanha, Artistas e Espaços de Sociabilidade no século XIX, O “Leão d’Ouro”... (1885-1905)
Nuno Saldanha, José Vital Branco MALHOA (1855-1933): o pintor, o mestre e a obra (v. p. 55)
Provocando uma teima
Margarida Elias, o Grupo do Leão de Columbano Bordalo Pinheiro...
Clara Moura Soares, A Galeria de Pintura do Restaurante "Leão de Ouro":
Percursos de uma Colecção, ARTIS,
Revista do Instituto de História da Arte da Faculdade de Letras de Lisboa, nº 6, 2007
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