segunda-feira, 9 de janeiro de 2017

Val de Pereira

Em sessão da Câmara Municipal de 26 de março de 1866, propôs o vereador Isidoro Viana que a azinhaga chamada de Vale do Pereiro passasse a ter a denominação de travessa de São Mamede, por estar no seguimento da mesma travessa, dando-se-lhe maior largura. Para isto bastava expropriar uma terra de semeadura e umas barracas velhas e insignificantes. Foi a proposta discutida e em seguida enviada a informar à Repartição Técnica. Até hoje.

Lisboa vista da Quinta da Torrinha Val Pereiro, gravura de William James Bennett sobre desenho de L. B. Parlgns.
Imagem: Museu de Lisboa

Esta azinhaga de Vale do Pereiro começava no Salitre e ia acabar no caminho ou rua daquele nome em frente da quinta de Santo António, apertada entre os muros da do Cordoeiro, à direita, e do casal da Carvoeira, à esquerda. 

Aproximadamente seguia a directriz da nova rua de Rodrigo da Fonseca que serve de testa ao Bairro Barata Salgueiro.

Da quinta do Cordoeiro, pouco sei; do casal alguma coisa pude apurar. Ficava encravado entre o Salitre, a estrada e a azinhaga de Vale do Pereiro, e constava de casas e outras dependências, terras de semear, olival, vinha e poço de engenho. A carvoeira que lhe deu o nome chamava-se Nazaré e era a proprietária das terras. Em 1820 e tantos pertencia o casal ao súbdito alemão Bento Guilherme Klingelhoefer.

Lisbon, published under the superintendence of the Society for the Diffusion of Useful Knowledge.
Drawn by W B  Clarke, engraved and printed by J Henshall Published by Baldwin & Cradock 47 Paternoster Row, 1833.
Imagem: Lisboa de Antigamente

Falecido este em 1841, os administradores liquidatários da herança puseram o casal em praça e foi arrematado, não sei por quem, nesse mesmo ano.

No estremo dele vê-se hoje o respiradoiro do túnel do Rocio. 

A designação de Vale do Pereiro ou de Pereira e Val de Pereiro é vulgar de sul a norte do país. A corografia do Baptista cita numerosos locais desse nome, com variantes na grafia e no género. 

Lissabon von der Quinta da Torrinha - Val de Pereiro. Umgebunge von Lissabon.
Aus der Geographischen Graviranstalt des Bibliographischen Instituts zu Hildburghausen, Amsterdam, Paris u. Philadelphia.
Author: Meyer, Joseph (1796-1856) Society for the Diffusion of Useful Knowledge (Great Britain), 1844.
Imagem: Cabral Moncada Leilões

O nosso Vale de Pereiro, às abas de Lisboa, remonta ao século XV, pelo menos, e é de crer provenha ainda de mais vetustas épocas. 

Em um dos livros da Mitra Patriarcal, colecção recentemente entrada na Torre do Tombo, encontram se três documentos referentes a este local, os quais passo a analizar.

É o primeiro uma escritura de emprazamento feita pelo arcebispo de Lisboa D. João, em três vidas, a Gil Martins do Poço, de uma vinha e olival em Vale do Pereiro. Está datada de 22 de março de 1442.

Lisboa, panorama tirado de Vale de Pereiro para a Avenida da Liberdade, Francesco Rocchini, c. 1881.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

Diz o documento muito precisamente: huma vinha e olival que son no Val de Pereira asima danda Luçus (Andaluz) asêrca da dita cidade que son de sua Meza Arsebispal e partem da parte do fundo do Soão (sul) com olival de Cathelina Feya que hora é de Bertholomeu Fernandes e da parte do Aguião (norte) com caminho Velho e deshy tornando através com olival de João Esteves créligo rasoeiro de São Lourenço e deshy entestar da parte do aguião (norte) por Marcos e cómaros e como se vay asima com olival e vinha de João de Lisboa mercador e deshy como se vay em redor e com vinha do Cabbido que ora traz Pêro Soayres Mercador e deshi como se torna arredor da parte da travesia com caminho de Éreos (herdeiros) junto com herdade de São Dominguos que foi do Berton, que chamam... e deshi como se torna afundo da parte do avrego (sul) com herdade que foi de dito Bertholomeu Feyiiandes e deshi mais afundo com vinha do Titulo da Conezia de Pêro Domingues, filho de Dominguo Annes, criado de El-Rey e vai-se accabar no dito olival de Cathelina Feya...

S. Sebastião da Pedreira, Largo do Andaluz e St.a Marta, vista tirada de Vale do Pereiro, Francesco Rocchini, c. 1881.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

O segundo documento é um instrumento de que consta pagar-se ao referido arcebispo quinhentos e setenta e dois reais brancos, de foro da referida propriedade. Isto é, o mencionado Gil Martins do Poço, como trazia arrendada a um tal João Vasques, escrivão da Távola do Conde de Ourém, uma quinta que possuía em Vale do Pereiro (ou Val de Pereira) e este lhe estava em dívida ainda de rendas anteriores, transferia para êle, emquanlo lhe durasse essa obrigação, o pagamento do foro, da tal vinha e olival, ao arcebispo de Lisboa.

O estromento, datado de 2 de março de 1448 reza assim:

Saibam os que este estromento pirem que na era do Nascimento de Nosso senhor Jesus Christo de mil quatrocentos e quarenta e oito annos dous dias do mes de março, yia cidade de Lisboa no paço dos Tabelliaens, pareceo hy Gil Martins do Poço morador na. dita cidade e dice que hera verdade que elle tinha huma quinta em termo da dita cidade onde chamam Val de Pereira arrendada por nove anos a João Vasques, escrivão da Tavola do conde dourem, (morador ?) na Judiaria dessa mesma por dez escudos douro em cada hum anno de renda pagados em duas pagas, segundo era contheudo no estromento do dito arrendamento, a qual quintaa com todas suas pertences o dito Gil Martins deu e aconteceo em partilhas a Gomes e Annes de Óbidos, escudeiro do Senhor Regente, marido de Catherina de Serpa, seu neto por parte da dita sua molher e que porem a elle Gil Martins aprazia como logo aprouve e mandou que o dito João Vaz da dita renda de dei escudos dê e pague ao arsebispo de Lisboa em cada hum anno, por dia de Páscoa quinhentos e settenta dous reaes brancos que o dito senhor arsebispo hade haver de foro de huma vinha e olival e herdades que com a dita quinta andafn e o que sobrar se pague a Gomes Eanes de Óbidos. . . etc. 

Lisboa, St.a Marta vista tirada de Vale do Pereiro, Francesco Rocchini, c. 1881.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

O recibo de pagamento do foro aludido feito por João Vás ao arcebispo de Lisboa em 6 de Julho de 1451, constitui o terceiro documento.

Como se viu pelas transcripções feitas, o território de Vale de Pereiro achava-se, naquele tempo, retalhado em quintas, olivais e vinhas, umas da Mitra Patriarcal — grande proprietária no termo de Lisboa — , e outras de particulares.

Segundo me parece da leitura atenta das complicadas confrontações, conclue-se ficar a propriedade da Mitra ao norte da azinhaga de Vale do Pereiro, onde, em 1755 e anteriormente mesmo, ficavam as terras fragmentadas dos Congregados do Oratório, hoje inclusas no ainda projectado Parque Eduardo VII. O caminho velho que ficava da parte do norte, bem poderia ser a estrada de Palhavã.

Lisboa, panorama tirado de Vale de Pereiro para a Avenida da Liberdade, Francesco Rocchini, c. 1881.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

Fiquemos nisto. A designação de Val de Pereira ou de Vale do Pereiro, é antiquíssima; a Mitra possuía ali propriedades, assim como o Cabido; Gil Martins do Poço tinha uma quinta e o resto retalhava-se em vinhas e olivais de diversos donos.

Lisboa, panorama tirado de Vale de Pereiro para a Avenida da Liberdade, Francesco Rocchini, c. 1881.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

O plantio da vinha era muito comum aqui às abas de Lisboa desde remotos tempos. E ver as Memorias para a Historia das Inquirições nos primeiros reinados de Portugal, publicadas em 1815, por João Pedro Ribeiro, numa inquirição feita — é de supor durante o reinado de D. Afonso III — a quantidade de vinhedos mencionados como pertencentes a várias ordens reli- giosas e militares. Os frades de São Vicente, entre muitos bens, possuíam uma vinha in Anduluzes (em Andaluz), outra in loco qui dicitur Alvaladi, e outras muitas no Lumiar, Charneca, Chelas, Leceia, Telheiras, Carnide, etc. Os frades de Calatrava tinham uma vinha in Arrujos (Arroios) e os de São Tiago e os Hospitalares, cada um a sua. Foram elas que forneceram até o século XVI o apreciado vinho do termo, então chamado de Campolide.

Pelo espaço de quatrocentos anos que de alterações se não fizeram!

Lisboa, rua do Salitre, vista tirada de Vale de Pereiro, Francesco Rocchini, c. 1881.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

Quantos emprazamentos, quantas vendas, quantas mudanças de proprietários!  De Andaluzes à Cotovia e a Campolide, por todo esse vasto trato de terreno, passou o vendaval dos séculos. Vale do Pereiro cem vezes transmudou a sua face matizada de vinhedos, de olivais e de searas verdejantes, cortada de azinhagas e de carreiros, esmaltada de muros de defesa, de cômoros e de marcos divisórios. Assente a poeira dos des troços produzidos nesse largo período, é que vamos agora examinar o arrabalde. 

Lisboa, panorama tirado de Vale de Pereiro para a Avenida da Liberdade, Francesco Rocchini, c. 1881.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

Era assim este sítio pela ocasião do terremoto, e foi-o ainda por muito tempo. Entrando na rua pelo lado do Salitre ficavam à esquerda as terras dos padres da Congregação do Oratório, que acabavam junto ao muro da quinta de Santo António, cujos restos ainda conheci e cuja casa de larga portada seiscentista, de cantarias boleadas, ainda hoje faz razoável figura entre os caixotões aparelhados à moderna, no troço que sobrevive da rua arrabaldina. 

Lisboa (Vale do Pereiro), estado actual das obras na Avenida da Liberdade, Ribeiro Cristino em O Occidente, julho de 1885.
Imagem: Hemeroteca Digital

Seria esta quinta aquela que, nos princípios do século XVIII, aparece denominada de Vale do Pereiro nos registos paroquiais de São Sebastião da Pedreira?

Nesses prestáveis e por vezes tão mal tratados informadores, vi que tal propriedade pertencia em 1708 ao padre Frei Pedro Borges, do hábito de Aviz, o qual nela faleceu em 6 de março desse ano, e que, em 28 de março de 1713, nela falecera também, José da Nóbrega Botelho, filho de Francisco da Cruz Nóbrega e de Andresa de Sousa Botelho.

O sítio de tal nome é já apontado em 1603 no assento de óbito de uma Margarida do Rio, mulher de um tal Pedro Fernandes, e a primeira vez que toma a designação de rua é em 1731, em igual documento respeitante a Marta de Almeida, viuva de D. João Maldonado.

Noutro assento de 1702, da paróquia de São José, fala-se em casas novas junto a Vale do Pereiro, sinal de que o subúrbio se começava a povoar.

Lisboa Arte Pintura Paisagem e animais [vista do Vale do Pereiro], João Cristino da Silva, 1859.
Imagem: MatrizNet

Pegada às casas da quinta de Santo António, via-se a ermidinha de Nossa Senhora da Mãe de Deus e dos Homens, de que já se falou, ao tratar de São Mamede, e depois mais terras dos Congregados até à azinhaga da Torrinha, cortadas a meio por um caminho (chamado beco de Santo António em 1833), que dava serventia à propriedade.

Entre esse beco e a quinta é que, mais tarde, se construiu, por ordem de Sebastião José de Carvalho e Melo,o abarracamento de Vale de Pereiro, para quartel de um dos regimentos da província, chamados em 1755 para policiar a cidade, e zelar pela segurança dos seus habitantes.

Parada militar no quartel de Vale do Pereiro, Paulo Guedes, 1906.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

Não sei qual dos regimentos, mandados vir nessa ocasião iria ocupar o abarracamento, após os bivaques dos primeiros meses, se o de dragões de Évora, se o de Cascais, se o de Peniche, se o de Setúbal ; o certo é que, em 1784, estava aqui albergado o de Infantaria do conde de Aveiras, em 1799, o de Lencastre, em 1834 o de infantaria 2 e ultimamente o 2 de caçadores que saiu para a Cova da Moira onde esteve até à sua extinção. O quartel de Vale do Pereiro ficou então servindo para quaisquer dependências de serviços de administração, e assim foi apodrecendo, como está sucedendo ainda ao de Campo de Ourique, manchando o bairro com o seu aspecto miserável. 

Creio que foi um litígio complicado, que obrigou o município a ter suspensa durante muito tempo a demolição do quartel pombalino. Os terrenos onde êle assentava pertencem, ou pertenciam, aos herdeiros da falecida condessa de Gamarido, cujos possuidores, a esse tempo, o cederam para aquele fim exclusivo, com determinadas cláusulas. Foi uma destas cláusulas que durante anos susteve de pé o vetusto casarão.

Primitivamente constava apenas de dois barracões postos a par, paralelamente à rua. Em 1784 fizeram-se-lhe obras. Repetiram-se estas em 1798, no sentido de alargar-lhe os cómodos que eram poucos. Em 1804 já se achava concluído, como se vê da planta levantada nesse ano pelo engenheiro Fava. 

Carta topographica de Lisboa e seus suburbios..., Duarte José Fava, reprodução de 1807.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

Em 5 de junho de 1908, como tal litígio se augurasse longe ainda de solução satisfatória, entendeu o quartel começar a demolir-se por iniciativa própria. Na madrugada desse dia desmoronou-se com estrépito, parte do edifício.

Hoje nada resta do velho pardieiro, e o alinhamento da avenida de Braamcamp está concluído. O prolongamento da rua de Rodrigo da Fonseca é que parece, ignoro porquê, estar ainda para demora, apezar de, em 15 de dezembro de 1914, se ter feito, por sessenta contos de réis, à senhora condessa de Foz de Arouce, a expropriação da parte da quinta dos Arciprestes ne- cessária para tal fim.

Aí por 1770 e tantos abundavam por aqui os militares em moradias junto do quartel. Furriéis, tambores-mores, cabos e soldados, albergavam-se nas casas abarracadas que enxameavam no local. Escusado será dizer qual seria a maior percentagem da população feminina.

Quando constou em Lisboa, na segunda quinzena de março de 1817, que el-rei D. João VI, escolhera para receber o preito da corte do Rio de Janeiro, pela sua subida ao trono, o dia 6 do mês seguinte, sábado de aleluia, os comandantes dos regimentos da guarnição da cidade resolveram dar um público testemunho da sua calorosa adesão a tão fausto acontecimento. Soube-se, que na véspera do dia festivo sairia o bando do Senado da Câmara determinando uma iluminação geral para a noite seguinte e, eis a oficialidade dos regimentos lisboetas, entusiasmada a preparar as luminárias dos quartéis.

Depois da parada no Terreiro do Paço, Rocio e ruas comunicantes, de todas as tropas de linha e milicianos, Guarda Real de Polícia, Atiradores e Voluntários Nacionais, e da revista e marcha que se lhe seguiu, retiraram para os seus aquartelamentos e principiaram os fogos de artifício e a pasmaceira das iluminações. Um dos regimentos que mais luziu no desempenho da sua vistosa homenagem, foi o de Vale do Pereiro, o bravo 16 de Infantaria.

Sigamos a descripção do prospecto segundo a notícia da Mnemosine Lusitana.

No corpo central da ornamentação luminosa que cercava a porta principal do abarracamento, figurava uma latada sobre um fundo de buxo e de loiro, de que se recobriam as paredes nesse ponto da fachada. Por cima corria uma balaustrada coroada de trofeus militares, entre os quais avultavam dois escudos com os dizeres "Amor" e "Gratidão", sobrepujados, estes, de um grupo de nuvens, que na ocasião da inauguração se abriram para patentear o retrato de el-rei.

Sob o retrato lia-se esta quadra:

Immune Portugal hum Deus promette, 
Campo d'Ourique ouvio seu Santo Brado; 
As promessas de hum Deus mudar não podem 
O Tempo, a Morte, nem Desgraça, ou Fado.

Entre os quatro pilares da latada que suportavam a balaustrada, de cada lado da porta, liam-se estas:

A Pátria de seus Filhos Amor pede, 
Dos Vassalos o Rei Fidelidade: 
Juramos defender em todo o tempo 
A Fé, a Pátria, as Leis, a Magestade.

Sois Monarcha, Senhor, dos fieis Lusos, 
Que não sabem curvar-se a extranho Dono; 
E quando por Sob'rano vos aclamão 
Em cada coração vos dão hum Throno. 

As entradas da dupla rampa de acesso ao portão, estavam ornamentadas com arcos de buxo, rematados por um leão, das garras do qual pendiam fitas com o dístico:

Perseverando, Lisboa. Regimento n.° 16

O muro da rampa revestido de ramos de loiro, terminava, em cada uma das extremidades, junto ao arco, por duas figuras, imitando mármore, toucadas de um cocar de plumas, e sopesando escudos, nos quais se lia, em um: 

Do insigne Regimento, audaz, temido, 
As batalhas tu vês, nas quaes, ó Lusos, 
Vencedor sempre foi, nunca vencido.

e noutro:

Ás Lusas Legiões soube dar Glória 
Beresford imortal, e em sua frente 
As conduzio ao Templo da Memória.

Na extensão do parapeito do muro, achavam-se disseminados vários medalhões, contendo os nomes e as datas de todos os combates, batalhas, sítios, bloqueios e assaltos em que o 16 tomara parte, desde o combate de Albergaria, em l0 de maio de 1809, até o sítio de Bayona, que durou desde 27 de fevereiro a 28 de abril de 1814.

No centro do parapeito da meia laranja, fronteira à porta do quartel, avultavam as armas reais de Portugal por baixo das quais se lia, num transparente, esta quadra:

Do Tejo ao Ganges sem temor levadas 
Dando Fama aos Annaes da Antiguidade 
Desde o Tejo ao Garona as conduzimos 
Fazendo temer Gallia em nossa idade.

Um grande número de luzes abrilhantava esta ornamentação, e bom seria que assim fosse para desviar as atenções do povinho, dos malíssimos versos que, como amostra do estilo literário da época de D. João VI, ofereço à curiosidade do leitor.

Tais foram as festividades feitas pelo regimento de Vale do Pereiro, em 1817.

Continue-se a descripçao de Vale do Pereiro ao tempo do terremoto.

Planta do terreno compreendido entre a linha de cumeada da Cotovia, Rato, Amoreiras e Arco do Carvalhão e a linha de talveg de S. José, St.a Marta e S. Sebastião da Pedreira, feita em 1756, pelos Carlos Mardel, Eugénio dos Santos, Elias sebastião Poppe e António Carlos Andreis; acrescentada com o traçado conjectural das ruas do bairro de Pombal e a baixa da Cotovia [nota: o topo da imagem indica o lado nascente].
Imagem: Internet Archive

A azinhaga da Torrinha, atravessava o chamado, hoje, Casal Mont'Almeida até à circunvalação e prolongava-se ainda depois até Campolide. A planta inserta no primeiro volume desta obra elucidará melhor o leitor do que todas as minhas indicações.

Lisboa, Avenida da Liberdade, comemorações do IV Centenário da Índia, Feira Franca.
Litografia de Ribeiro Cristino e Roque Gameiro, 1898.
Imagem: PAM

Depois da azinhaga, ficava a quinta do mesmo nome, em cujo âmbito se erguia a torrinha octogonal, que, por tanto tempo, alindou com o seu ar um tanto ou quanto misterioso, aquele local.

Lisboa Parque Eduardo VII casal da Torrinha 01 Paulo Guedes AML 04.jpg
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

Nesta, quinta esteve em 1804 um colégio de que era director e proprietário, o professor Luís Maigre Restier. Nesse mesmo ano se mudou para Xabregas e, mais tarde, em 1833, estava, ainda com o mesmo nome, na travessa das Mónicas. Tempo depois ocupou, as casas e o torreão, uma fábrica de velas de estearina de que era sócio ou corrector de vendas o conhecido Castelani. Não era raro vê-lo agenciando a sua vida por estas paragens, dando regabofe aos ga rotos que se compraziam em trazê-lo às vaias, chacoteando do seu bigode ruivo e da sua figura ridícula.

A torrinha, sacrificada às exigências do progresso, começou a demolir-se em sexta feira santa, 20 de abril do ano findo, após uma comprida e porfiada resistência ao camartelo municipal do seu último morador, o francês Gustavo Mathieu, que ali tinha instalada uma oficina metalúrgica e onde demorava há mais de 25 anos.

Vi desaparecer com pena a simpática torrinha que era tanto da fisionomia daquele sítio, e comigo decerto muitos lisboetas sentiram a mesma pena.

Lisboa Parque Eduardo VII casal da Torrinha 02 Benoliel AML 04.jpg
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

Esculápio, no Século de 21 de abril do ano último, fez, como extremado amigo da cidade, o seguinte epicédio ao pobre torreão setecentista do dr. José de Sousa Monteiro:

"Vetusto monumento de fé republicana de outras eras, anda o camartelo municipal a derruí-la, para dar seguimento ao parque Eduardo VII, que já se desenha esplendoroso ao cimo da Avenida, coroando a rotunda e o lugar onde, para as calendas gregas, se há-de erguer a tão falada estátua ao Marquês de Pombal. O leitor amante das antiguidades de Lisboa que vá vê-la nos seus derradeiros momentos, a célebre Torrinha onde se faziam dantes os comícios republicanos e onde os janízaros da municipal se fartaram de espadeirar o povo e os propagandistas da ideia nova. Faz pena vêr a Torrinha a cair aos bocados, em holocausto ao progresso e ao aformoseamento da plástica citadina!"

Dão-te a morte; coitadinha,
E tu morres fria e calma 
Torrinha que eras "Torrinha", 
Do teatro da minha alma.


Lisboa Parque Eduardo VII casal da Torrinha 03 Bárcia AML 04.jpg
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

Seguia-se à Torrinha a casa e quinta de Manuel de Jesus, que há pouco também foi a terra e onde residiu desde as ultimas expropriações municipais, o sr. António Fernando Silva, chefe do serviço dos jardins da Câmara. Sobre o portão desta moradia, que ficava a cavaleiro da avenida de Fontes Pereira de Melo, avultava (julguei eu, por muito tempo, que fosse um brazão) um ornato feito de alvenaria com certa elegância decorativa. Na demolição lá se foi também.

Este Manuel de Jesus, que suponho um pequeno proprietário arrabaldino, era casado com uma tal Isabel Francisca que faleceu, em i5 de dezembro de 1737, nesta sua casa do Vale de Pereiro.

Lisboa Pintura a óleo do Parque Edurdo VII Vale do Pereiro 03 AML.jpg
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

A esta casa seguia-se um pedaço da quinta das Lagens que se prolongava para o norte-poente, e depois dependências muradas da propriedade, a esse tempo, de Domingos Ferreira de Aguiar, a qual tornejava para o pitoresco largo de Andaluz [...] (1)


(1) Matos Sequeira,   Depois do Terremoto, Volume II, Academia das Sciências de Lisboa, 1917

Leitura adicional:
Ruy Travassos Valdez, A Quinta da Torrinha ao Vale do Pereiro

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