sábado, 10 de setembro de 2016

Chamar-lhe-ei o Grupo do Leão...

Chamar-lhe-ei o Grupo do "Leão", a este grupo do artistas distinctos, rapazes ainda todos, cheios de enthusiasmo e de talento, que resolveram ha um mez, entre boks e fumaças de cachimbo, organisar uma exposição de bellas artes, uma exposição essencialmente moderna, onde ha algumas telas preciosas, reveladoras de bôas intelligencias.

O Grupo do Leão (detalhe), Columbano Bordalo Pinheiro, 1885.
Imagem: MNAC

É nesse grupo que se destaca a bôa physionomia sympathica de Silva Porto, o notavel paizagista que entre nós foi quem nos mostrou mais profundamente a largueza e a elevação da forma naturalista applicada á paisagem.

Ha na cervejaria Leão, da rua do Principe, uma meza mesmo á esquerda, mesmo no extremo da parede que volta para a sala dos bilhares. É n'essa mesa que o grupo se costuma reunir — o grupo dos pintores.

Ás 8 horas a mesa está cheia. A cervejaria está em actividade, na sua balburdia enorme de gente que entra e sae a cada instante, sentindo-se as portas baterem com ruidos sêccos, suffocados. No ar anda o brouhaha estranho e pezado que nasce do pisar das solas na areia do lagedo; das conversas trocadas em todas as mesas n'uma confusão desordenada de línguas; do bater agudo das pedras dos dominós nos marmores das mezas; do arrastar dos bancos na areia; dos sons finos, sonoros, das facas percutindo nas bordas dos pratos de porcelana; dos gritos dos criados pedindo bebidas; de toda esta confusão ruidosa d'uma brasserie, na hora da sua maior vida, quando não ha uma meza vaga e quando se enche pela segunda vez o cachimbo tendo já bebido tres canecas de cerveja...

Cervejaria Leão de Ouro, 1885.
Imagem: Hemeroteca Digital

A essa hora o grupo está completo. Ha ali typos certos, que nunca faltam uma noite, para quem aquelle cavaco constitue uma parte tão integrante da vida, que não deixam de comparecer cada 24 horas passadas, como não deixam um dia de almoçar e de jantar!

Entre os certos, os que estão sempre presentes, tendo diante de si o seu copo de cognac, ou o seu copo de genebra, ou o seu copo de cerveja, notam-se:

Silva Porto — um pouco curvado para meza, exhibindo a serenidade honesta e grave da sua cuidada barba, uma barba grave como a d'um medico;

Silva Porto, Columbano Bordalo Pinheiro, 1885.
Imagem: MNAC

Antonio Ramalho — o distincto paysagista, um baixo, rochonchudo, a bochecha gorda, trigueiro, atarracado, grande bigode preto, espesso e farto: um bom exemplar de rapaz sadio;

António Ramalho, Columbano Bordalo Pinheiro, 1885.
Imagem: MNAC

Malhoa — outro das mesmas proporções physicas, mas um pouco mais alto e mais claro, cara cheia, larga e expansiva, onde nasce uma pequena barba cerrada, cortada em baixo em duas pontas;

Manuel Henrique Pinto e José Malhoa, 1885.
Imagem: MNAC

Chrystino — gravador: um quasi imberbe, do phisiunomia risonha, pallido, sempre mettido num sobretudo;

Chrystino, Columbano Bordalo Pinheiro, 1885.
Imagem: MNAC

Pinto — o alto e magro do grupo, de bigode louro, crescendo com arrogancia; e outros que apparecern mais ou menos como Vieira, Martins, Vaz, Girão, etc.

Moura Girão, Rafael Bordalo Pinheiro e José Rodrigues Vieira, 1885.
Imagem: MNAC

E neste grupo entram tambem os amadores como Alberto d'Oliveira, — uma bella cabeça de nazareno de barba ruiva — e Monteiro Ramalho, o irmão do Antonio Ramalho, cujo nome tem já firmado alguns excellentes trabalhos litterarios.

José Malhoa, João Vaz,  Alberto de Oliveira e Silva Porto por Columbano.
Imagem: MNAC

Foi a esta mesa que eu conheci o distincto pintor Columbano Pinheiro que agora está em Paris, trabalhando n'um grande quadro para o Salon de 82; é n'esta meza que ás vezes, como que caida sem se saber d'onde, surge a cabeça sympathica d'um artista de muito merito, e d'um rapaz de muito espirito — Jose de Figueiredo — cofiando eternamente o seu orgulhoso bigode loiro...

Columbano por Columbano.
Imagem: MNAC

Emfim é d'esta meza servida, protegida, defendida, pelo Manuel, um dos criados da "brasserie", de grandes suissas pretas, e que, á força de convivencia com umas poucas de camadas de artistas, que tem passado por aquella meza tradiccional, dá opiniões sensatas, outras vezes um tanto arrojadas — sr. Manuel! — sobre as estampas das illustraçães e acompanha, sem nunca desafinar, em todos os coros que o grupo levante, ou de indignação por algum acto que podesse rebaixar a arte, ou de applauso por algum novo trabalho revelador de merito.

Criado Manuel, Columbano Bordalo Pinheiro, 1885.
Imagem: MNAC

É a esta meza que se debatem todos os assumptos artistiscoa do nosso paiz, analysados e discutidos com um enorme enthusiasmo de mocidade, e de talento; é a esta meza que com interessese veem os jornaes artísticos que o estrangeiro exporta, e onde são recebidos com alegria os trabalhos dos que luctam lá fóra por implantar definitivamente a "arte verdadeira", a escola do naturalismo em arte.

O Grupo do Leão, Columbano Bordalo Pinheiro, 1885.
Representados, da esquerda para a direita: em fundo, João Ribeiro Cristino, Alberto de Oliveira, criado Manuel, Columbano, criado António, Braz Martins; sentados, em segundo plano, Manuel Henrique Pinto, João Vaz, Silva Porto, António Ramalho, Rafael Bordalo Pinheiro; em primeiro plano, José Malhoa, Moura Girão, João Rodrigues Vieira.
Imagem: MNAC

É ali que os que voltam do estrangeiro vêm contar as suas aventuras e as suas horas do trabalho constante, é ali que elles veem confiar a meia duzial de rapazes, seus companheiros  da Academia, que os escutam com um silencio respeitoso, todas as suas expansões e todas as suas sympathias d'artista.

Foi ali, aquella estreita banca de marmore, que elles pensaram reunir todos os seus trabalhos, concluindo as telas que tinham em principio, para organisarem uma exposição brilhante, sem estarem subordinados a programmas, a escolhas e a catalogos de Academia, exposição exclusiva do Grupo do Leão, bello grupo na verdade, que se revelou agora ao publico como possuidor de magnificas intelligencias, todas modernas, todas de hoje, que acompanham na tela as tendencias actuaes da arte naturalista tão brilhantemente revelada já no livro e no jornal, pela nova geração litteraria.

Grupo do Leão, 1.° Salão de Quadros em 1881, desenho de António Ramalho.
Imagem: Hemeroteca Digital

Esta exposição merece ser analysada com cuidado por todos que se agrupam nas vastas fileiras da escola moderna, e devem todos saudar nestes rapazes cheios de talento e de iniciativa propria os companheiros sympathicos e audazes que pelo seu lado sabem dignamente arrostar com o preconceito academico, com a rotina, com a velharia emfim!

Z. Segredo


(1) Marianno Pina, O Grupo do Leão, Diário da Manhã, 15 de Dezembro de 1881

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